domingo, 2 de agosto de 2009

E O RELACIONAMENTO...


Milton Ferreira Verderi

Decidi iniciar esta matéria com a letra da (intelingente) musica de João Bosco e Aldir Blanc- A Nível De...

Vanderley e Odilon são muito unidos
e vão pro Maracanã todo domingo
criticando o casamento
e o papo mostra que o casamento anda uma bosta...
Yolanda e Adelina são muito unidas
e se fazem companhia todo domingo
que os maridos vão pro jogo.
Yolanda aposta que assim a nível de Proposta
o casamento anda uma bosta
e a Adelina não discorda.
Estruturou-se um troca-troca
e os quatro: hum-hum... OK... tá bom... é...
Só que Odilon, não pegando bem a coisa,
agarrou o Vanderley e a Yolanda ó na Adelina.
Vanderley e Odilon bem mais unidos
empataram capital e estão montando
restaurante natural.
Cuja proposta é cada um come o que gosta.
Yolanda e Adelina bem mais unidas
acham viver um barato
e pra provar tão fazendo artesanato
e pela amostra Yolanda aposta na resposta.
E Adelina não discorda
que pinta e borda com o que gosta.
É positiva essa proposta
de quatro: hum-hum... OK... tá bom... é...
Só que Odilon
ensopapa o Vanderley com ciúme
e Adelina dá na cara de Yoyô...
Vanderley e Odilon
Yolanda e Adelina
cada um faz o que gosta
e o relacionamento... continua a mesma bosta!

Ao ler esta letra, começamos a pensar sobre o que é o relacionamento, seja ele hétero, bissexual ou homossexual.
O relacionamento entre pessoas é a forma como eles se tratam e se comunicam. Quando os indivíduos se comunicam bem, e o gostam de fazer, diz-se que há um bom relacionamento entre as partes. Quando os indivíduos se tratam mal, e pelo menos um deles não gosta de entrar em contacto com os restantes, diz-se que há um mal relacionamento.
Isso é completamente óbvio, mas por que não percebemos o óbvio? Não há dúvidas de que a sexualidade permeia boa parte da vida humana. Está presente nas conversas de bar, na literatura, nas propagandas, nas revistas, nas piadas, na moda e até nos púlpitos e altares, uma vez que a "moral sexual" é uma das preocupações modernas mais gritantes no entender de católicos, evangélicos e membros de um sem-número de outras religiões.
Certamente a heterossexualidade, em nossa cultura, é reafirmada e ratificada o tempo todo: cada vez que uma propaganda de cerveja mostra o líqüido acompanhado por lindas mulheres e homens embasbacados por elas; cada vez que um casal homem-mulher tasca um beijo na rua sem ser incomodado; em cada capa das centenas de revistas que temos, das de fofocas às de noivas, passando pelas masculinas ao estilo da Playboy; cada vez que o programa do Luciano Huck faz o concurso de rainha do Carnaval ou apresenta quadros como "Namoro às escuras"; cada vez que uma moça apresenta o namorado à família e cada vez que uma igreja realiza uma cerimônia de casamento.
Não admira, portanto, que os héteros não precisem verbalizar que são héteros: a abundância de símbolos, modelos e sinais que dizem isso é tamanha que a "declaração formal" se torna absolutamente desnecessária.
Admiro aquelas pessoas que expressam claramente os seus interesses amorosos. É uma dádiva ter um pretendente que age desta forma. Estas pessoas, quando estão disponíveis e se encontram nas circunstâncias adequadas, mostram, verbal e não-verbalmente, a atração que sentem pelo parceiro. Este tipo de manifestação coloca o relacionamento na perspectiva certa, ajuda a criar um clima amoroso, é lisonjeiro para o parceiro, eleva a sua auto-estima, desperta esperança da reciprocidade de interesses e pode induzir o interesse amoroso. Quem se porta desta forma também acentua seus próprios sinais de gênero (feminilidade ou masculinidade).
Esse automatismo somente é quebrado quando o gay ou a lésbica se declara assim. E, afinal, o que é estar no armário, senão apresentar-se publicamente como heterossexual, fazendo uso do ambiente que essa abundância de símbolos propicia? Ninguém poderia permanecer no armário, pelo menos este armário que conhecemos, se não existisse tal automatismo.
É interessante, inclusive, ver como o raciocínio que aqui apresento é capenga. Um homem hétero apresentar uma mulher como sua namorada é tido como absolutamente normal e corrente. Por que um homem gay apresentar outro homem como seu namorado é "expor a privacidade desnecessariamente, porque ninguém precisa saber o que fazemos entre quatro paredes"?
Os dois pesos e as duas medidas ficam claros, sendo que, em ambos os casos, existe invariavelmente uma afirmação da identidade e da orientação sexual que vem no pacote. A diferença é apenas que a primeira é aceita e a segunda não. Nesse aspecto, portanto, o que se esconde por trás do discurso da "privacidade homo" é simplesmente o preconceito (ou o autopreconceito), a dificuldade ou impossibilidade de se reconhecer a homossexualidade como legítima.
Alias, não legitimar a homossexualidade é também uma forma curiosa de afirmação hétero e, no que diz respeito à ala masculina, está relacionada a algo que denomino negação do corpo do homem. Defendo o conceito de que a masculinidade heterossexual é fortemente calcada nessa negação. A maneira com que ainda se educam os rapazes por aí leva o homem adulto a desprezar uma relação mais íntima e mais próxima com seu corpo e com os corpos de seus semelhantes – e isso implica em um desprezo da homossexualidade como ratificação da condição heterossexual.
Vamos tornar essas ligações mais claras: no "meio" heterossexual masculino, qualquer coisa é motivo para se evocar, de forma depreciativa, a homossexualidade (ou, mais corretamente, o "homossexualismo", posto que o foco nem sempre é a sexualidade global, mas tão-somente o ato genital entre dois homens). Homens héteros muitas vezes pensam mais em "veados" do que os próprios gays. Uma olhada mais "demorada", um movimento mais "suspeito", uma declaração "mal colocada" e pronto: lá está o pessoal chamando o outro de "veado" ou fazendo alusão a nádegas e similares.
Nesse ponto, devo esclarecer que este artigo não é uma apologia aos gays: claro que alguns (ou muitos?) de nós não têm esse tipo de consciência, e, além disso, percebo que o mesmo fenômeno se sucede às mulheres, sejam héteros, sejam lésbicas. Apesar de a educação dispensada a elas ter muito de ridícula (que o digam as feministas), nesse ponto tem um bom efeito. Mulheres fazem coisas incríveis juntas: vão ao banheiro em dupla, mostram novas estrias e celulites umas às outras, olham-se quando nuas, tocam-se, beijam-se e até arriscam-se a sair de mãos dadas, mesmo que sejam apenas boas amigas e heterossexuais. Não residiria justamente aí parte da "sensibilidade feminina"? No caso delas, fica ainda mais evidente que a questão que proponho não passa pelo contato com o objeto de desejo imediato.
Em um vestiário masculino, por sua vez, quem não olhar pro chão ou dispensar mais de alguns poucos segundos ao corpo do outro corre riscos. Se as mulheres mostram estrias novas no peito para suas amigas, um homem hétero é praticamente incapaz de mostrar o pênis para um amigo, a fim de que ele opine sobre uma ferida, por exemplo. Se as mulheres não vêem razão para se diminuírem depois de examinadas por um ginecologista, idas de um homem hétero a um urologista já despertam comentários jocosos – e que dirá um exame de toque retal, tão invasivo quanto um papanicolau, mas bem mais "atacado" do que este último?
Talvez por isso seja possível dizer que, com certa margem de segurança e descontando aqueles que carecem de informações básicas, mulheres de qualquer orientação e gays, em média, cuidam mais de seu corpo e têm maior conhecimento sobre ele do que os homens héteros, salvo algumas maravilhosas exceções.
É uma pena que esses homens, presos em sua própria masculinidade e tão seguros de si na ponta da pirâmide sócio-sexual, não percebam os males que a negação de seu próprio corpo lhes causa. As brincadeiras porque um gay elogiou a beleza de um deles ou porque um amigo deu uma reboladinha "supeita" são apenas um sintoma. Sinal de que algo, no fundo, não vai bem na sexualidade - mesmo que não se perceba. Talvez seja correto, afinal, dizer que os homens héteros também precisam romper com esse estado de coisas.
E diante disso tudo, eu pergunto ao leitor. E o relacionamento?